conto de Margarete Solange
O luto me pintou de negro o
coração.
A tristeza e a saudade, se por
decreto não sei,
se fizeram instrumentos de meu
trabalho.
Essa dor que tritura o âmago
deságua em literatura.
Renegar a profissão o traria de
volta?
Nada vai
fazê-lo voltar. E essa saudade vai ficar aqui dentro me esmagando num aperto
indizível. E eu nem sei se quero que ela se vá.
Sinto-me
tão só. Não quero esquecê-lo
e a
lembrança dele me segue e persegue,
por toda
parte.
Em cada
canto da casa: no silêncio,
no soprar
do vento;
em cada
recanto de meus quintais e jardim.
Em nosso
banquinho, no meio do pátio, sentávamos todas as noites, amávamos estar lá em
companhia um do outro, debaixo do vasto céu, para conversar.
A morte o
abraçou prematuramente.
Ele não
queria partir, eu lia isso em seus olhos. Olhinhos contentes que eu tanto amei.
Quem dera, ele estivesse aqui nesse momento, me olhando sem nada dizer. Assim
ficou por dias e noites escondendo de mim que sofria. Lentamente partia sem me
deixar perceber. Não foram suficientes as vezes que o abracei. Deveria tê-lo
abraçado mais.
Com
bravura canina, lutou até o fim. Agora, ele não sofre mais. E as minhas
lágrimas viraram chuva, águas de uma poesia longa e triste... Por toda parte o
vejo correr, orgulhoso de ser quem era: um pequeno vira-latinha marrom. Chamo-lhe
o nome em pensamento. E
mesmo que gritasse, ele não responderia.
Ele era um
grande amigo, inesquecível. Éramos inseparáveis. A minha presença trazia-lhe
notório contentamento. Ao seu lado, eu me sentia uma rainha. Uma rainha sem
reino, sem posses, sem trono, senhora de nada, o título me bastava. Eu era
gigante no seu pequeno mundo canino.
O baixinho
se achava o tal. Orgulhava-se de sua origem mal contada, não registrada em
lugar algum. O pai era pastor alemão, e a mãe, já se sabe, virava latas. Ele
era líder, esperto; às vezes mal-humorado. Escalava parede, brincava de procurar
quem se escondia e obedecia aos comandos, mesmo que estes fossem feitos em inglês. Ficava de
pé, sentado, deitado, “fazia mortinho” e dava a patinha:
– Essa
não, a outra – ele obedecia, trocando as patinhas quantas vezes fossem necessárias.
– Peça desculpas – ele ficava de pé com as patas sobre a minha perna até que eu
lhe afagasse a cabeça dizendo “tá desculpado.” – Escolha – mostrava-lhe as duas
mãos fechadas. Numa delas estava escondido o biscoito. Ele tocava com a patinha
duas vezes, indicando a mão onde estava escondido o petisco. Ele sempre
acertava.
Tinha faro
apurado, ele era “o cara”! As visitas duvidavam de sua capacidade, até vê-lo
mostrar-se. E ele adorava mostrar tudo o que sabia, sem qualquer inibição. Por
vezes, em troca de nada.
Certa vez,
ele fugiu sem que fosse visto. Logo que percebi, saí a procurá-lo do jeito que
estava: desarrumada, despenteada. Seguia pelas ruas e gritava o seu nome na
esperança de que me ouvisse e viesse até mim. Era uma rainha louca em busca de
seu cão fugitivo. Nem enxergava se pessoas me olhavam. Melhor não saber. Tudo o
que queria era ter o meu cachorrinho de volta. Naquela noite eu o considerei um
ingrato. Trocou-me pela liberdade de correr pelas ruas, sem destino. Do meu
quarto, eu podia ver além do muro, e mesmo sendo madrugada, da janela eu olhava
esperando vê-lo voltar.
Na manhã
do dia seguinte, ele estava de volta. Levara um coice de um jumento. A cabeça
estava muito inchada. Aparentemente tivera traumatismo. Ele gemia de dor,
jogava-se contra a parede. Mesmo chorando, eu cantei para ele alguns hinos, até
que ele se aquietou. Melhorava a cada dia, e milagrosamente escapou. Anos
depois, novamente escapou da morte, que veio encontrá-lo, ameaçadora e
possessiva. Por isso acreditei que nessa terceira luta, mais uma vez ele seria
vencedor. Porém, a velhice chegou antes da hora. Ele ainda não tinha oito anos,
mas, por causa da doença, parecia velhinho. Era penoso vê-lo perdendo o seu porte
de rei. Ele não latia mais, tornou-se um reizinho mudo: a doença tirou-lhe a
voz. Estava com um nódulo na garganta e o tratamento não era possível porque
ele estava com anemia profunda.
– Sente-se
– disse-me o veterinário com o envelope dos exames na mão.
Sentar?
Sentar para quê? Para ouvir o que eu não desejava. Desde então, torturava-me a
ideia de ser eu a decidir sobre a vida do meu amiguinho. E quando soube que não
poderia assistir a sua partida, me doía terrivelmente ter que entregá-lo e
deixá-lo num momento como aquele. Queria ter certeza de que ele não sofreria, e
para isso eu teria que estar ao seu lado, segurando-lhe a patinha até que
partisse.
Ele sabia
da doença desde o princípio, e não quis me contar. Nem poderia, não saberia
falar de um assunto como esse sem o auxílio das palavras. Estava tão magro. Eu
tentava fazê-lo comer e por vezes, para me agradar, ele comia. Essa situação me
inquietava, dia após dia. E a cada amanhecer eu esperava que ele estivesse
morto, isso seria menos doloroso para nós dois.
No livro
de John Steinbeck “Ratos e homens”, o cachorro de Candy estava velho, então o
convenceram a abrevia-lhe o sofrimento. Mas não foi ele quem o levou para receber
o tiro de misericórdia. Em consideração ao amigo, ele deveria estar ao seu lado
até o fim. Por amizade, eu teria que estar com o meu cãozinho até que ele desse
o último suspiro. Eu imaginava que se tivesse um revólver, daria um tiro na nuca
do meu amiguinho, assim ele não mais sofreria e eu não o teria abandonado nesse
momento difícil.
A cada vez
que se sentia ameaçado, ele fitava-me insistentemente, como a pedir, com os
olhos, para não entregá-lo, não abandoná-lo. Eu entendia quando ele me falava
esfregando a cabeça em minha perna, esse era o seu modo de me pedir para ajudá-lo.
Optei por não fazer a eutanásia. Solicitei ao veterinário que me ajudasse a
amenizar-lhe o sofrimento até que tivesse morte natural. Ele me seguia pela
casa, e deitava-se junto a mim onde quer que eu estivesse. À noite, eu dormia
perto dele para que não estivesse sozinho na hora de partir. Com isso, ele
melhorava. Voltei a ter esperança. Talvez no meu ingênuo bem-querer, acreditei
que ele fosse imortal.
Ele lutou
bravamente para permanecer em minha companhia todo o tempo que pudesse. Partiu
numa madrugada em que eu não estava ao seu lado. Naquela noite, não me deixou
perceber que tinha chegado a hora.
Com ele
aprendi tanta coisa. Ele me ensinou a amá-lo. O meu amigo tinha por mim um amor
tão sincero. Ele me ouvia e compreendia, era sensível aos meus sentimentos.
Caso eu estivesse triste, ele sentia, mesmo que eu nada lhe dissesse. Se me
visse chorar, latia, saltitava tentando me alegrar.
Por causa
dele, mudei, e fiz coisas que antes nem imaginava fazer. A minha mãe admirava-se
de ver-me sentada na areia afagando-lhe o pelo. Na infância e juventude, eu
tinha fobia a cães, não seria capaz de tocá-los de modo algum. Aprendi com ele
uma nova maneira de ser e de amar. Foi tão surpreendente e doloroso vê-lo
inerte, os olhinhos parados, fitando-me sem ver. Olhos lindos, que eu tanto
amei.
Eu sabia
que o futuro iria tirá-lo de mim; então, tomava posse do presente, apertando-o
em meus braços, sabendo que aquele momento em breve seria passado. Agora, todas
as noites uma saudade ferina grita o seu nome e ele não vem, porque não está em
lugar algum, mas as lembranças dele estão por toda parte. E eu nem quero que
elas me deixem, porque um grande amor a gente não quer esquecer.
Nono dia
sem ele. É tão difícil não tê-lo... Ele ocupava um espaço muito grande em meu
coração; agora, esse espaço está vazio. Com lágrimas nos olhos e uma profunda
dor na alma escrevo e dedico a ele, o meu grande amigo Rex – Rei em
latim – estas minhas palavras de lamento.
Ele se foi
do mundo real... Mas ainda vive nas páginas da literatura: em cada poesia, em
cada palavra na qual se transformou nesse novo mundo. Ele não era tão somente
um vira-latinha... Era inteligente, alegre, divertido, apaixonado pela vida...
Era o Rei REX... E eu o amava.
Fotografia: Felipe Galdino
Margarete Solange,
Conto: Saudade Ferina
In Contos Reunidos,
p. 137-141
Sarau das Letras, 2014.