O homem pode não ser rico, mas se ele tiver na bagagem a leitura será mais que isso: será sábio. A sabedoria, sem dúvida, é grandiosa, é tudo na vida, não na morte. Na morte, todos os homens são igualmente leigos.

Margarete Solange. Contos Reunidos, p. 98

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O Perdão de Sofia

conto de Margarete Solange
Sofia e eu éramos muito amigas, mais que irmãs. Sabe... o tipo de amigas assim... que não tem segredos uma para com a outra?... Pois éramos assim! Discutíamos de vez em quando, mas logo fazíamos as pazes e acreditávamos que, a cada obstáculo vencido, nossa amizade tornava- se mais forte, mais indestrutível.
Conhecemo-nos na adolescência, imagina como? – Gostávamos do mesmo cara, um chato por sinal! Não vou nem mencionar o nome dele aqui, para não lhe dar essa honra imerecida. Disputávamos para ver qual de nós duas iria conseguir conquistá-lo; resultado: ele desprezou a ambas e, por fim, decidimos nos unir contra ele, e acabamos nos tornando amigas.
Eu aprendi a lição: não podemos deixar a paixão cegar nosso entendimento. No entanto, não acho que Sofia também a tenha aprendido, porque tornou a apaixonar-se sem reservas, outra vez. A princípio, não interferia; porém como ela passou a pedir constantemente a minha opinião, não lhe escondi a aversão que sentia pelo rapaz. Chamava-se Fred, era sério, calado, reservado, solitário... Sei lá, um chato mesmo! Sentia-me totalmente deslocada quando estava na companhia dos dois.
Sofia era louca por ele, e ele por ela, creio!... Mas ele fazia o tipo durão que não demonstrava os verdadeiros sentimentos. Tinha dificuldades de aceitar o jeito de ser de minha amiga. Ela era alegre, espontânea, gostava de festas, de algazarras, de fazer amigos, e o namorado era o oposto de tudo isso; além do mais, parecia não querer dividi-la com ninguém, nem mesmo comigo, imagina?!... Sua melhor amiga! A meu ver, como cheguei primeiro, tinha já meus direitos adquiridos por tempo de amizade.
Namoraram cerca de dois anos... dois anos e alguns meses, não importa!... mas a incompatibilidade de gênio fez com que Fred declarasse, assim sem mais nem porquê, que seria melhor que não se encontrassem nunca mais, e até mentiu, tenho certeza, dizendo que não a amava. Sofia escreveu-me uma carta contando-me o quanto ele tinha sido duro e cruel. Nessa época, eu morava na capital “na casa do professor”, porque estava cursando mestrado. Como não podíamos conversar pessoalmente, ela me escrevia ou telefonava, e confesso que me sentia enfadada de seus queixumes.
Ela estava sofrendo muito com a separação, mas não me sensibilizei com sua dor. Desejava, ardentemente, que minha romântica amiga esquecesse logo esse insensível que se atravessou em seu caminho. Parecia que nada mais fazia sentido para ela. Aborrecia-me seu estado de depressão profunda. Eu com tanto para ler e estudar, ainda tinha que ouvi-la, horas a fio, desabafando suas mágoas.
Quando viajei de férias para minha cidade, grande foi a minha surpresa: Sofia estava magra, abatida, infeliz. Perguntou-me se deveria procurar Fred. Eu muito autoritária, passei-lhe um sermão sem tamanho, enfatizando principalmente que deveria ter amor próprio, e que já havia se humilhado bastante. Acreditei tê-la convencido de que ele não merecia o seu imenso amor. Minha amiga esforçou-se para cumprir à risca os meus conselhos. Por seis meses, não o procurou, até que, por fim, telefonou-me dizendo que não suportava mais a saudade, e que precisava vê-lo. – Respeitava de tal modo os meus “sábios” conselhos que precisava do meu consentimento para poder descumpri-los. Não tive paciência nessa noite, e até fui bastante grosseira com ela. Ora, eu estava tão atordoada com os meus próprios problemas, e ainda ter que ficar ouvindo as suas lamúrias. Lancei-lhe em rosto uma porção de desaforos: disse-lhe que estava sendo egoísta, que eu tinha mais o que fazer do que ficar ouvindo seus chiliques de menina mimada.
Queixava-se constantemente de que não estava se sentindo muito bem, tinha insônia e falta de apetite. Tempos depois, a reclamação mudou: sentia uma sonolência incontrolável. Dizia que não tinha ânimo para nada. Essas eram apenas algumas entre outras tantas queixas mais; ficava até difícil acreditar nos seus achaques!... Perguntei-lhe por que não desabafava com sua família; ela, então, me explicou que não queria preocupá-los; outras vezes, dizia que eles não eram capazes de compreendê-la. Sua família já não simpatizava com Fred, e depois dessa mudança súbita no comportamento de minha amiga, a antipatia que seus pais sentiam por ele cresceu ainda mais, passaram a detestá-lo. Não admitiam nem sonhar que os dois pudessem ainda fazer as pazes. Sofia era a alegria da casa, mas depois do rompimento do namoro, que nem sequer tinha causa justa, a moça perdera a alegria de viver, trancou-se na solidão de seu quarto e não queria falar com ninguém. Toda a alegria dos seus vinte e dois anos se esvaiu como que por encanto.
Como antes já dizia, na última vez que me telefonou fui muito antipática e como sendo mais velha e mais experiente, achei que lhe fazia bem dizer palavras duras; quem sabe assim a ajudaria a amadurecer, ela reagiria e se esforçaria para superar aqueles dias maus. Errei, pensando que estava fazendo a coisa certa.
Depois de algumas semanas, arrependi-me de minhas palavras ríspidas e decidi visitá-la, a fim de me desculpar. Só então, soube que estava realmente doente, e que já fazia vinte e cinco dias que estava no leito de um hospital. Seu quadro clínico era gravíssimo: leucemia aguda. Por vários dias, desejei vê-la, entretanto as visitas estavam restritas somente à família. Logo que ela ficou sabendo de minha presença, insistiu que precisava me ver.
Na tarde do dia seguinte, deixaram-me entrar. Choramos abraçadas. Não perdera a essência de sua beleza, porém sua palidez me assombrou grandemente. Ainda assim, não achei que estivesse moribunda.
            – Você vai conseguir sair dessa, amiga... – dizia-lhe entre lágrimas. Mal podia acreditar que aquela figura plácida e muda, de palidez impressionante, era a moça exuberante e amiga que encantava todos que dela se aproximassem. – Me perdoa por não ter te compreendido, pensei que era somente dor de cotovelo e que logo você ficaria bem – eu enxugava as minhas lágrimas com as costas da mão e tentava me controlar; enquanto isso, ela, inabalável, fitava-me com olhos penetrantes. – Lembra do tempo em que nós duas éramos apaixonadas pelo mesmo cara?... Você chorava por ele, mas eu não... – minha amiga esboçou um sorriso fraco, de quem estava preste a dar o último suspiro. Prossegui, tentando animá-la. – Eu tive que te ensinar a dar duro naquele chato, lembra?...
Continuei falando e falando, algumas vezes chorava, outras sorria. Minha amiga passou a fitar-me com olhar vago, sereno. Senti medo de que estivesse indo embora. Um desespero como que trazido pelo vento invadiu-me. Eu quis que ela conversasse comigo como em tempos passados, mas tudo que ela fazia era acenar, com dificuldade, movendo a cabeça, sempre que eu insistia para que confirmasse ou negasse alguma coisa. Entrei em pânico. Estávamos somente nós duas no quarto, e achei que, se me ausentasse para chamar alguém, quando retornasse ela teria partido, sem que pudesse detê-la.
– Me perdoa Sofia, fui tão injusta com você... fui má... – ela me olhava serena e acenava a cabeça ora em sinal afirmativo, ora numa negação; então eu ficava sem entender o que isso queria dizer. – Você me perdoa, amiga?... – Supliquei por fim sem acrescentar mais nenhuma palavra depois de minha sentença, a fim de não ter dúvidas quanto à sua reposta. Ela acenou dizendo que sim e sossegou novamente. – Quero ouvir você dizendo que me perdoa, preciso ouvir isso de seus lábios, entende?
Depois de insistir algum tempo, percebi que ela já não podia falar; era difícil conter o choro. Beijei-lhe a fronte, sentindo-me culpada de sua desventura. Talvez eu tivesse lhe dado o conselho errado... Além do mais, abandonei-a nas ocasiões em que necessitava tanto de compreensão. Não podia mais ajudá-la, não dependia mais de mim. Tentava me controlar, mas não conseguia. Estava ali diante de minha grande amiga, vendo-a indo embora, sem poder segurá-la em vida.
– Não vá Sofia... – sussurrei unindo nossas cabeças. E como obstinadamente pedia que me perdoasse, fez acenos de que queria caneta e papel, e escreveu, valendo-se de seus últimos esforços, as seguintes palavras: ‘Eu perdoo você’.
A partir de então, não me separei mais daquele pedaço de papel. Essas palavras me absolviam de minha culpa ao mesmo tempo em que me traziam a certeza de que minha amiga não queria que duvidasse de seu perdão e, também, estava consciente de que não teria mais outra oportunidade para confirmá-lo. Estava certa em minhas deduções: tão logo a deixei nesse dia, ficou inconsciente e, dois dias depois, partiu.
Lamentavelmente, não podia modificar sua triste sina e não queria nem mesmo pensar que, com ajuda prévia, poderia tê-la feito diferente. Cada vez que o sentimento de culpa vinha torturar-me, abria o pedaço de papel e lia o que nele estava escrito. Aquele papel dava uma sensação de... de... sei lá!... Creio que um escravo, ao receber a sua carta de alforria, reagiria como eu, tendo necessidade de conferir a todo instante a posse do seu precioso documento.
Procurei de todas as maneiras localizar o seu grande amor. Seria o último favor que prestaria à minha amiga, aliás, a única que realmente me aturava; é que sou meio autoritária e temperamental.
Somente no domingo, poucas horas antes do sepultamento, consegui o número do telefone de Fred. Com voz emocionada, resumi tudo que havia acontecido no pouco tempo em que os dois tinham rompido o namoro. Dei-lhe as devidas instruções, a fim de que pudesse vê-la pela última vez. E naquele momento de sofrimento em que a cabeça não raciocina direito, cheguei a pensar que ela também ficaria feliz por tê-lo avisado a tempo de comparecer à sua despedida.
Durante a cerimônia religiosa, enquanto os parentes e amigos estavam absorvidos, contemplando o rosto belo e angelical de Sofia, pude percebê-lo a uma certa distância, esforçando-se para enxergá-la. Não precisei conversar com ele para saber o que estava sentindo, pude ler no seu semblante transtornado a dor, a culpa... o desespero.
Fred a amava, não restava mais nenhuma dúvida. Foi mais um que não soube compreendê-la, que não acreditou na sua fragilidade. Ele não se aproximou muito; permaneceu escondido entre as árvores do sossegado cemitério. Foi melhor assim. Poderia haver alguém no meio dos que pranteavam que, dominado pelo desespero, alçasse a voz para declará-lo culpado daquela fatalidade atroz.
– Pobre Fred... – eu lamentava, sentindo uma inquietação cochichando ao meu ouvido, algo que não podia compreender no momento o que seria. – Eu pelo menos tinha o meu perdão autografado, e ele, coitado, seria para sempre atormentado pelo sentimento de culpa. Sei que ela não gostaria que fosse assim. Tinha um coração benévolo, incapaz de guardar mágoas, de negar o perdão a quem quer que fosse. – Pobre Fred... – eu repetia mentalmente enquanto me afastava inconformada, seguindo o cortejo.
A inquietação não me deixava. Era como se algo me impulsionasse a retornar. Pedi que parasse o carro e desci, alegando que preferia voltar para casa caminhando; assegurei que isso iria me ajudar a relaxar. Era essa minha intenção, mas instintivamente atravessei a avenida e retornei ao cemitério, apressando os passos: precisava voltar ao túmulo de minha amiga – para quê?... – eu ainda não sabia dizer. Ao atravessar o portão enferrujado, reduzi as passadas e segui, sem pressa, em direção ao meu destino. Fred estava lá junto ao túmulo de Sofia, as costas de sua camisa completamente molhadas de suor. Ah, ela gostava tanto de vê-lo usando aquela camisa azul! Sorri e chorei ao mesmo tempo, lembrando-me de como as pequenas coisas traziam grande contentamento à minha amiga.
Ocultei-me entre as árvores e fiquei a observar o comportamento do rapaz. Ele parecia um louco... um ébrio, estava inconformado, desesperado, castigado! Vi quando caiu de joelhos, soluçando. Não ouvia o que dizia, mas eu podia muito bem imaginar como se sentia. Fiquei lá, no meu canto, não ousei interrompê-lo, e ele não se foi enquanto o sol não se pôs.
Despediu-se da amada, pondo uma rosa vermelha sobre o mármore branco do túmulo. Esse seu gesto carinhoso me fez sentir por ele uma ternura infinda. Chorei, oculta pelo tronco de uma árvore frondosa, pranteei por ele, lamentei o remorso que sentia. Ele não soube amar, é bem verdade, mas sei que Sofia nenhuma mágoa levou consigo, e que não suportaria vê-lo assim, atormentado.
Ao chegar junto ao portão de ferro, na entrada do silencioso cemitério, deteve-se por alguns instantes. Parecia ter intenção de retornar, mas não o fez. Olhou na direção onde a amada jazia e pronunciou alguma coisa que não pude ouvir por causa da distância que nos separava. Tão atordoado estava que, creio, nem chegou a perceber minha presença.
Não teve a mesma chance que eu de receber o perdão de Sofia. Agora ela estava morta, e a culpa o torturava, e iria persegui-lo pelo resto de seus dias. Sei que ela não gostaria que isso acontecesse, mas como nada mais poderia fazer, cabia a mim, como sendo a sua melhor amiga, a missão de ajudá-lo – mas ajudá-lo como?...
Não tive coragem de me aproximar dele. Não sabia o que dizer. Quando o vi saindo pelo portão, lembrei-me do papel que trazia comigo. Retirei-o de minha bolsa e li silenciosamente. Fechei os olhos. Parecia até ouvir a voz de Sofia ecoar em minha mente, repetindo aquelas palavras de perdão:
‘Eu perdoo você... Eu perdoo você... Eu perdoo você...’
De repente, não sentia mais nenhuma culpa pela morte de minha amiga. Desentendemo-nos várias outras vezes e sempre que fazíamos as pazes, ríamos de nossas desavenças e concordávamos com a opinião de que uma amizade é mesmo cheia de idas e voltas. Aquele papel não fazia mais nenhum sentido para mim; foi aí que entendi o motivo de minha inquietação.
Corri até o portão. Vendo que Fred seguia a passos lentos, alcancei-o e entreguei-lhe o papel, sem dizer-lhe palavra. Não precisava dar-lhe nenhuma explicação: a caligrafia de Sofia estava firme, inconfundível. Atravessei novamente a avenida, desta vez, sentindo-me leve, redimida, segui o meu caminho aliviada, com a sensação de que acabara de cumprir uma missão muito especial.


Fonte 1: Margarete Solange
Mais Belo que o Por do Sol 
e outros contos Santos: 2000
Fonte 2: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
e outros contos*
Fundação Vingt-un Rosado, 2009.



*Obra premiada no concurso literário
escritor Norte-riograndense: Projeto 
Rota Batida III. Fundação Mossoroense