conto de Margarete Solange
Moravam numa favela vizinha a
um bairro nobre da cidade. Gostavam de aventuras, o perigo os fascinava.
Costumavam brincar por lugares acidentados: altos, sujos e perigosos. Raras
vezes eram vistos com aparência limpa, trajando roupas decentes. Viviam soltos,
sem disciplina, brigando pelas ruas.
Alguns se apresentavam
nos estacionamentos pedindo um dinheirinho em troca de lavarem para-brisa ou
vigiarem os carros. Porém, de que espécie de perigos poderiam, uns moleques
magros e desnutridos como eles, proteger os automóveis, senão deles próprios?
Havia, ainda, os que visitavam os locais onde depositavam o lixo da cidade, a
fim de catarem objetos que podiam ser ainda aproveitados. Alguns chegavam até a
comer os alimentos que encontravam misturados às escórias.
As gangues da “Favela
Nova” eram formadas por garotos de pouca idade, os mais velhos podiam ter em
média de doze ou, no máximo, trezes anos. Na verdade, eles ainda não tinham a
mente totalmente voltada para o mal. A finalidade principal dos meninos era
provocar uns aos outros com palavrões, e brigarem entres si para decidirem
quais eram os mais fortes e mais espertos. A gangue dos “Meninos Maus” era a
mais temida, porque sempre vencia as brigas graças à força de Cláudio, conhecido
pela alcunha de “Fominha”, e a Cosme, a quem chamavam de “Tampinha”.
Cláudio, o maior de todos, era
considerado estúpido pelos companheiros por não ter coragem de fazer o mal. Cursava
ainda a segunda série e mal sabia ler e escrever. Tinha uma fome insaciável.
Tampinha,
apesar de ser o mais velho da turma, era baixinho e magro, porém muito astuto.
De sua mente provinham as ideias mais audaciosas. Considerava-se o cabeça de
sua gangue. Abandonou a escola na época em que
fazia a terceira série; sabia ler, escrever, e era muito esperto em matemática.
Costumavam
reunir-se no telhado de um velho prédio abandonado que ficava num dos bairros
vizinhos. Naquela sexta-feira, Fominha foi o primeiro que chegou ao local combinado.
Em seguida, apareceu Tampinha, já com cara de que tramava alguma desordem.
– Tô sabendo viu,
Fominha...
– Tá
sabendo o quê?
– Vi quando
você empurrou Felipe daqui de cima. Eu tava escondido ali atrás e vi tudo...
fui lá embaixo e vi que ele tá mortinho da silva.
– Eu mermo
num fiz isso, não. Nem vi o Felipe hoje... – falou Fominha com voz cantada,
carregada de sotaque nordestino.
Tampinha
aproximou-se da parede baixa que rodeava a fachada do prédio e olhou para
baixo. Fominha o acompanhou e demonstrou surpresa ao ver o pequeno Felipe
morto, ensanguentado e estatelado pela queda.
–
Aquele lá é o Felipe?
– Tá
querendo me tapear, é cara?... vi que você empurrou ele, e acho melhor a gente
sair daqui logo, senão vou levar a culpa também... – fitou o companheiro com
olhar matreiro – Em troca do meu silêncio você vai ter que ser meu guarda-costas.
Como o
companheiro sequer sabia qual a função de um guarda-costas, o chantagista
encarregou-se de explicar-lhe detalhadamente, já com ares de dono da situação.
Tendo um menino forte e grandão à disposição, poderia realizar todas as suas peripécias,
frutos de sua mente astuta.
– Você
é um mentiroso, Tampinha!... acabei de chegar! Quem sabe foi um acidente...
acho que Felipe foi inventar de andar em cima da parede e caiu lá embaixo...
– Caiu,
nada! – gritou Cosme para intimidar o companheiro – Felipe era pequeno, mas era
esperto... confesse, cara, é melhor pra você... eu vi tudo... e você mesmo
vivia dizendo que não gostava dele...
– Num
gostava mermo... mas eu nunca que ia ter coragem de matar o coitado.
Os dois
meninos discutiram alto, até que Cláudio, o fominha, perdeu a paciência e
avançou para cima do adversário. Na verdade, fez o que pôde para adiar a briga,
esperando que os outros companheiros chegassem e o ajudassem a por um fim à
discussão, sem que ele tivesse que apelar para a violência. Afinal, não se
sentia bem batendo em meninos menores que ele.
Os
minutos passavam, e a turma não aparecia. E nem poderiam, visto que o astuto
Cosme não combinou, com nenhum outro, aquela reunião.
– Se eu quiser, faço você ser expulso da gangue, seu bochechudo
palerma... – ameaçou Tampinha, magrelo raquítico, cuja força estava na língua e
na astúcia. – Seu assassino covarde! Assassino!
– Num sou assassino,
não... – avançou em direção ao companheiro e deu-lhe um empurrão fazendo-o cair
sentado. – vai ver foi você mermo qui matou Felipe...– berrou Cláudio já
sem paciência, vermelho de raiva – E se vocês me expulsari da turma dos
“Meninos Maus”, eu passo pru lado dos outrus meninu e bato em
vocês tudinho... E vou dar logo uma surra em você, pra você nunca mais chamar eu
de assassino – fechou o punho e, enfurecido, avançou trincando os dentes.
Ágil como um gato, Tampinha levantou-se e pôs-se ao lado do
outro garoto, fazendo ginga de malandro esperto. Confessou friamente que ele
próprio sequestrou e matou Felipe, batendo-lhe na cabeça com uma pedra de
paralelepípedo. Depois, o atirou do alto do velho prédio, e esperou que o companheiro
chegasse para poder incriminá-lo. Falava com ares de quem se sentia orgulhoso
de si mesmo. Limpou a poeira das mãos no calção já marrom de tanta sujeira, e
olhando por cima da parede, contemplou a sua vítima na calçada do prédio abandonado.
Cláudio,
“o Fominha”, apavorado com a crueldade de seu companheiro, deu-lhe as costas e
se foi, decidido a abandonar definitivamente a malandragem. Deixou de ser visto
com os outros meninos vadiando pelas ruas; não tinha vocação para o mal.
Tampinha fez o seu caminho de volta em direção
à “Favela Nova”, assoviando, balançando os ombros de um lado para outro. Ao
chegar em frente à casa da menina loura, de voz fina e jeito manhoso, que lhe
virava o rosto ou fazia-lhe caretas sempre que o via passando, encostou-se
junto à cerca e, vendo-a brincando no pátio sentada sobre a areia, gritou:
– Ei, menina! – a garota
levantou a cabeça, olhou em sua direção fitando-o com desagrado. – Aquele
gatinho branquinho, chamado Felipe é seu?... – ela balançou a cabeça confirmando
a pergunta e Cosme, sem demora, prosseguiu falando com voz mansa, tentando
aparentar ser um vizinho bonzinho e prestativo – pois eu vi um menino grande,
um tal de Fominha, levando ele pra os lados daquele prédio ali – apontou na direção
do velho edifício.
A
menina não esperou para ouvir mais nada. Levantou-se rapidamente e correu em
direção a casa, chorando e gritando pela mãe. Fazia já algumas horas que estava
sentindo a falta de seu gatinho.
Tampinha
prosseguiu em seu caminho, descendo a rua com andar faceiro. Ao chegar a uma
certa distância, voltou-se discretamente e, passando a mão pelos cabelos
esticados, endurecidos pela sujeira, olhou de soslaio e sorriu matreiro. Voltaria
no dia seguinte e, mostrando-se cheio de boas intenções, perguntaria à menina
loura o que havia acontecido com seu gato Felipe.
Mais Belo que o Por do Sol
e outros contos, Santos,
2000, p. 69-72
e outros contos, Santos,
2000, p. 69-72
Fonte 2: Contos
Reunidos,
Sarau das Letras, 2014, p. 232-235