Texto de Vitória Lima
Só conseguimos deitar no papel os
nossos sentimentos, a nossa vida. A arte é sangue, é carne. Além disso, não há
nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que
somos.”
Graciliano Ramos
Com esta
citação, Margarete Solange Moraes, escritora de Natal, RN, dá início ao seu
romance “Santa Fé” (Mossoró, RN: Sarau das Letra, 2014).
A admiração
da escritora pelo autor alagoano vai se delineando aos poucos na narrativa, a
partir dos títulos das obras. Ambos os romances (“Santa Fé” e “São Bernardo”)
referem-se às propriedades rurais nas quais se desenrolam as respectivas ações.
No romance de Margarete Solange temos como protagonistas a professorinha
Jaqueline e o dono de terras Seu Ricardo, que em muito se assemelham aos
protagonistas de Graciliano Ramos em “São Bernardo”: a professora Madalena e o
também dono de terras Paulo Honório. Os conflitos desenvolvidos pela trama, a
luta pelo poder dentro da relação, são claramente delineados tendo o romance de
Graciliano no background. Esta comparação é mesmo explícita e muitas vezes “São
Bernardo” é citado pelos protagonistas de Margarete Solange. Seu Ricardo, como
Paulo Honório, é um homem autoritário, sisudo, de barba fechada, mãos ásperas e
segue à risca o modelo do “Byronic hero”, o herói bairônico, que tem como
inspiração o herói Heathcliff, protagonista do romance “O Morro dos Ventos
Uivantes” de Emily Brontë. Aliás, este modelo de homem rude ainda hoje exerce
grande atração sobre a imaginação feminina, haja visto um personagem recente, o
Capitão Herculano da novela “Cordel Encantado” da Rede Globo, que tanto
impressionou o público feminino.
Mas a autora
Margarete Solange faz questão de atualizar sua trama e questiona o desfecho dos
romances vitorianos, ou mesmo de alguns mais modernos, mais desconectados com a
revolução das mulheres. Em trecho metalinguístico, perto do desfecho da sua
obra, ela diz:
Nada acontece num romance sem que o
autor consinta [...] Sei que se ela (a sua própria narrativa) fosse
escrita por um romancista de outros tempos, ele certamente incluiria os
capítulos finais narrado a morte do personagem principal [...] Vendo
por outro lado, seria até interessante que, nas narrativas atuais, o homem
saísse de cena para que o destaque ficasse com a mulher. Esse desfecho seria
assim como que um retrato de minha época: a mulher ganhando espaço, superando a
fragilidade, mostrando ser capaz de liderar, firmando-se nos próprios
alicerces, sem ser necessariamente amparada pelo braço masculino. Noutros
tempos, quase sempre era a heroína quem morria no final da história. (Santa
Fé, pp. 157-158).
Embora muito
se questione ainda hoje a relevância da questão da autoria feminina versus a
masculina, considero que nos dois romances em questão a autoria e a escolha dos
respectivos narradores determinam o desfecho da trama. Em “São Bernardo”, o
personagem Paulo Honório é também o narrador da sua própria história:
Começo declarando que me chamo Paulo
Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro.
A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e
cabeludo tem-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas
qualidades, a consideração era menor. (São Bernardo, Rio: Record,
1979, p. 12).
Em “Santa
Fé”, a narradora é a própria protagonista, Jaqueline, uma jovem de 25 anos, em
busca de sua realização pessoal e profissional. A autora não tenta esconder as
fraquezas de sua heroína/narradora, apresentando-a, às vezes, como uma pessoa
calculista e, como ela mesmo se define, “esperta”. Muito diferente da indefesa
Madalena de Graciliano. Esta “esperteza” a impede de cair em depressão ou
entregar-se ao desânimo quando vê seus planos caírem por terra. Pelo contrário,
aos poucos ela vai conquistando os corações mais empedernidos que a cercam e
mesmo o seu selvagem marido termina sendo “domado”. Ela consegue aplacar o seu
ciúme (lembro aqui que Seu Ricardo, como Paulo Honório, é um homem rude, mais
velho e, às vezes, sente-se diminuído perante a mulher, mais jovem e instruída,
com um diploma de professora e, por isso mesmo, com um melhor
domínio das palavras). A aparência pouco cuidada dos dois personagens
masculinas contribui para que se sintam inseguros quanto ao amor de suas
esposas, mais jovens, educadas, delicadas, cultivadas. É interessante observar
também a ênfase que os dois autores põem sobre as mãos desses personagens:
ásperas, calejadas pelo trabalho no campo. No caso de Paulo Honório, grandes e
cabeludas, o que as torna até um pouco assustadoras: mãos de ogro. Mas o
parágrafo final de “Santa Fé” não deixa dúvidas quanto ao acordo celebrado pelo
casal, que consegue superar as diferenças e viver em harmonia. E é também
interessante observar que a mulher passa a cuidar das mãos do marido com cremes
e massagens, uma atitude simbólica que a ajuda a conquistar-lhe a confiança. O
pragmatismo e o interesse, que tinham antes aproximado Jaqueline e Seu Ricardo,
transformam-se em afeto verdadeiro, em confiança mútua:
A partir de então, procurei passar mais
tempo ao lado do meu marido. Ele aproveitava para me ensinar a administrar
todos os negócios que mantinha nos limites da fazenda Santa Fé. (Santa Fé,
2014, p.162).
A chave de
tudo está na escolha dos narradores, no ponto de vista adotado por cada escritor:
Margarete Solange, escritora contemporânea que se identifica com as questões
relativas à luta das mulheres, escolhe uma figura feminina que melhor se
aproxima de suas simpatias, como narradora. Já Graciliano, um nordestino às
antigas, elegeu como narrador um homem, que bem
representa os homens rudes e secos com quem conviveu no Nordeste
alagoano.
Vitória Lima,
Escritora Brasileira:
Poetisa e Professora de Inglês e Literatura.
Autora de Anos Bissextos (1997)
e Fúcsia (2007).
O texto Santa Fé x São Bernardo
está publicado no Jornal "A UNIÃO"
2º Caderno - Vivências
João Pessoa, Paraíba, 2015
Quarta-feira, 1 de abril, página 6.
http://issuu.com/auniao/docs/jornal_em_pdf_01-04-15