O homem pode não ser rico, mas se ele tiver na bagagem a leitura será mais que isso: será sábio. A sabedoria, sem dúvida, é grandiosa, é tudo na vida, não na morte. Na morte, todos os homens são igualmente leigos.

Margarete Solange. Contos Reunidos, p. 98

sábado, 16 de maio de 2015

Santa Fé x São Bernardo

Texto de Vitória Lima

Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. A arte é sangue, é carne. Além disso, não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos.”  
                                          Graciliano Ramos

Com esta citação, Margarete Solange Moraes, escritora de Natal, RN, dá início ao seu romance “Santa Fé” (Mossoró, RN: Sarau das Letra, 2014).
A admiração da escritora pelo autor alagoano vai se delineando aos poucos na narrativa, a partir dos títulos das obras. Ambos os romances (“Santa Fé” e “São Bernardo”) referem-se às propriedades rurais nas quais se desenrolam as respectivas ações. No romance de Margarete Solange temos como protagonistas a professorinha Jaqueline e o dono de terras Seu Ricardo, que em muito se assemelham aos protagonistas de Graciliano Ramos em “São Bernardo”: a professora Madalena e o também dono de terras Paulo Honório. Os conflitos desenvolvidos pela trama, a luta pelo poder dentro da relação, são claramente delineados tendo o romance de Graciliano no background. Esta comparação é mesmo explícita e muitas vezes “São Bernardo” é citado pelos protagonistas de Margarete Solange. Seu Ricardo, como Paulo Honório, é um homem autoritário, sisudo, de barba fechada, mãos ásperas e segue à risca o modelo do “Byronic hero”, o herói bairônico, que tem como inspiração o herói Heathcliff, protagonista do romance “O Morro dos Ventos Uivantes” de Emily Brontë. Aliás, este modelo de homem rude ainda hoje exerce grande atração sobre a imaginação feminina, haja visto um personagem recente, o Capitão Herculano da novela “Cordel Encantado” da Rede Globo, que tanto impressionou o público feminino.
Mas a autora Margarete Solange faz questão de atualizar sua trama e questiona o desfecho dos romances vitorianos, ou mesmo de alguns mais modernos, mais desconectados com a revolução das mulheres. Em trecho metalinguístico, perto do desfecho da sua obra, ela diz:

Nada acontece num romance sem que o autor consinta [...] Sei que se ela (a sua própria narrativa) fosse escrita por um romancista de outros tempos, ele certamente incluiria os capítulos finais narrado a morte do personagem principal [...] Vendo por outro lado, seria até interessante que, nas narrativas atuais, o homem saísse de cena para que o destaque ficasse com a mulher. Esse desfecho seria assim como que um retrato de minha época: a mulher ganhando espaço, superando a fragilidade, mostrando ser capaz de liderar, firmando-se nos próprios alicerces, sem ser necessariamente amparada pelo braço masculino. Noutros tempos, quase sempre era a heroína quem morria no final da história. (Santa Fé, pp. 157-158).

Embora muito se questione ainda hoje a relevância da questão da autoria feminina versus a masculina, considero que nos dois romances em questão a autoria e a escolha dos respectivos narradores determinam o desfecho da trama. Em “São Bernardo”, o personagem Paulo Honório é também o narrador da sua própria história:

Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo tem-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor.  (São Bernardo, Rio: Record, 1979, p. 12).

Em “Santa Fé”, a narradora é a própria protagonista, Jaqueline, uma jovem de 25 anos, em busca de sua realização pessoal e profissional. A autora não tenta esconder as fraquezas de sua heroína/narradora, apresentando-a, às vezes, como uma pessoa calculista e, como ela mesmo se define, “esperta”. Muito diferente da indefesa Madalena de Graciliano. Esta “esperteza” a impede de cair em depressão ou entregar-se ao desânimo quando vê seus planos caírem por terra. Pelo contrário, aos poucos ela vai conquistando os corações mais empedernidos que a cercam e mesmo o seu selvagem marido termina sendo “domado”. Ela consegue aplacar o seu ciúme (lembro aqui que Seu Ricardo, como Paulo Honório, é um homem rude, mais velho e, às vezes, sente-se diminuído perante a mulher, mais jovem e instruída, com um diploma de professora  e,  por isso mesmo, com um melhor domínio das palavras). A aparência pouco cuidada dos dois personagens masculinas contribui para que se sintam inseguros quanto ao amor de suas esposas, mais jovens, educadas, delicadas, cultivadas. É interessante observar também a ênfase que os dois autores põem sobre as mãos desses personagens: ásperas, calejadas pelo trabalho no campo. No caso de Paulo Honório, grandes e cabeludas, o que as torna até um pouco assustadoras: mãos de ogro. Mas o parágrafo final de “Santa Fé” não deixa dúvidas quanto ao acordo celebrado pelo casal, que consegue superar as diferenças e viver em harmonia. E é também interessante observar que a mulher passa a cuidar das mãos do marido com cremes e massagens, uma atitude simbólica que a ajuda a conquistar-lhe a confiança. O pragmatismo e o interesse, que tinham antes aproximado Jaqueline e Seu Ricardo, transformam-se em afeto verdadeiro, em confiança mútua:

A partir de então, procurei passar mais tempo ao lado do meu marido. Ele aproveitava para me ensinar a administrar todos os negócios que mantinha nos limites da fazenda Santa Fé.  (Santa Fé, 2014, p.162).

A chave de tudo está na escolha dos narradores, no ponto de vista adotado por cada escritor: Margarete Solange, escritora contemporânea que se identifica com as questões relativas à luta das mulheres, escolhe uma figura feminina que melhor se aproxima de suas simpatias, como narradora. Já Graciliano, um nordestino às antigas, elegeu como narrador um homem, que bem representa os homens rudes e secos com quem conviveu no Nordeste alagoano.  





Vitória Lima,
Escritora Brasileira: 
Poetisa e Professora de Inglês e Literatura.
Autora de Anos Bissextos (1997)
 e Fúcsia (2007).
O texto Santa Fé x São Bernardo
está publicado no Jornal "A UNIÃO"
2º Caderno - Vivências
João Pessoa, Paraíba, 2015
 Quarta-feira, 1 de abril, página 6.
http://issuu.com/auniao/docs/jornal_em_pdf_01-04-15

sábado, 9 de maio de 2015

Agraciada

            poesia de Margarete Solange

Quem é esse anjo que cuida
Da criança doente,
E com mãos leves
Afaga a cabeça carente?
Nas madrugadas silentes,
Pacientemente vela.
Ao longo de sua existência
Zela, exorta, ensina e ama.
Sabiamente aconselha,
E com instinto sobrenatural
Pressente o mal.
Essa pessoa tão terna
Que ao seio alimenta,
Com os braços acalenta
E com a voz doce
Canta canções de ninar,
É uma mulher virtuosa,
Cheia de graça e firmeza,
Que da fragilidade extrai fortaleza,
E se diz bem-aventurada
Por ter sido agraciada
Com a bênção de ser mãe.




Fonte:
Margarete Solange.
Inventor de Poesia 
2ª edição
Oito Editora, 2014,
p. 54

terça-feira, 5 de maio de 2015

Prefácio da obra - O Velho e a Menina

José Roberto Alves Barbosa

Santiago e Ilmar, dois velhos. Ambos aprenderam a enfrentar as agruras da vida com resignação. Aprendi a admirar Santiago muito cedo. Fui apresentado ao velho Santiago por um senhor americano, também velho, chamado Hemingway. Ressaltou o fatalismo de Santiago na tentativa de fisgar um grande peixe. Descobri, então, que Santiago era pescador. Hemingway disse-me que, para aquele velho cubano, pescar era um ritual religioso e, como tal, o holocausto se fazia necessário. Compreendi, assim, a exigência do sacrifício.
Em todo sacrifício há derramamento de sangue, por isso Santiago não só feriu, também teve que ser ferido e aspergir o produto de seu esforço com o próprio sangue. A maior dor que o velho teve que enfrentar foi a frustração de não obter o peixe tão desejado. Fora comido pelos tubarões. Devoraram tudo, não só o seu amigo peixe, mas também seus sonhos e expectativas.
Ilmar também teve os seus sonhos literalmente castrados. O amor desiludido, a dialética relação entre a esperança e o desencantamento permeava sua mente. Ouvi de Santiago, pelas palavras de um homem, mas foi uma mulher que me contou de Ilmar. Margarete destacou dilemas e frustrações do velho angustiado. Pela formação religiosa que lhe é inerente, Margarete preferiu ressaltar a comicidade e os resultados da experiência do velho Ilmar. Fiquei encantado com a história do velho, também sofredor. Em face da penumbra de sofrimento que acompanha Ilmar, acabou sendo inevitável fazer associações entre os dois velhos: Santiago e Ilmar. Por conhecer os lugares por onde passou Ilmar, acabei me identificando com o cenário em que ele viveu. Às vezes, chegava a me ver caminhando nas praias de Pirangi e Areia Branca. Pelo mar. Ou la mar como preferiria Santiago. Naquelas praias, Ilmar encantava os jovens contando suas estórias. É claro, todo velho, às margens de uma praia, adora contar estórias! Mas com Ilmar era diferente. Contar estórias era como lançar sementes na terra. Participar do processo criador. Construir, ao mesmo tempo, sonhos e ilusões. Celebrar a vida.
Desde cedo, Ilmar percebeu que a vida vale a pena, quando conseguimos lhe dar sentido. Com as estórias do velho sofredor, constatamos que o homem se recusa a ser o que lhe dizem que é. Por isso, através da arte, busca transcender. A arte e a religião transcendem o homem. O próprio Deus revela-se, também na arte. Na poesia de Davi. Nos cânticos de Salomão. Na mensagem profética de Isaías. Na descrição filosófica do logos em João. Talvez seja, por isso, difícil de desassociar a arte de Deus. Hemingway e Margarete partem desse pressuposto. Hemingway, mesmo marcado pelo ateísmo, não conseguiu se desvencilhar da sombra da imagem do sofrimento humano, especialmente o de Cristo. Margarete, ao contrário de Hemingway, respira a fé cristã, por isso não tem receio de inserir, comparar e aplicar trechos bíblicos em sua interpretação do sofrimento.
Seguindo a arte de contar estórias, tanto Hemingway quanto Margarete comungam uma temática evidente no percurso filosófico e cristão. A questão do sofrimento humano. Sofrer talvez seja uma condição existencial.
Deixo-vos, portanto, com a narrativa de Margarete sobre o velho Ilmar, seguindo, com suas palavras poéticas, os desafios enfrentados pelas limitações da vida humana. Se o caro leitor ainda não conhece Santiago, recomendo que o faça. Enquanto isso, ouça a voz de Ilmar. Valerá a pena. No final, como eu, o caro leitor, também, será grato a Margarete por nos legar mais essa porção de sua habilidade literária e concluirá, como Hemingway, que o homem pode ser destruído, mas nunca derrotado.

Julho de 2001




O Velho e a Menina
Margarete Solange.
Oito Editora, 
Natal, 2014, 142 p.
Prefácio de: 
Jose Roberto Alves Barbosa
Foto da capa:
Felipe Galdino